quinta-feira, 7 de julho de 2011

Em defesa da Teologia

Em meados do segundo século, um cristão procedente do Ponto, na Ásia Menor, chegou a Roma com uma mensagem atraente. Márcion, que era filho de um bispo, acreditava na radicalidade do amor de Deus. Para ele, a bondade era o atributo supremo da divindade, que se mostrava sempre, em todas as circunstâncias, um Deus generoso, misericordioso e perdoador. Como alguém poderia discordar de conceitos tão nobres e belos? Pois bem, pouco tempo depois, ao compreender as implicações mais amplas desse ensino, a igreja romana expulsou Márcion e o considerou um herege.
Para ele, o amor divino era tão exclusivo que eliminava a noção de justiça. Deus perdoa a todos, até mesmo os pecadores impenitentes, porque não pode agir de outra forma. Assim, não há condenação de qualquer espécie, e todos irão se salvar. O Deus verdadeiro, dizia ele, é o amoroso pai de Jesus Cristo, e não a divindade justiceira e vingativa do Antigo Testamento, o criador do mundo material. A doutrina de Márcion se mostrou tão cativante que ele atraiu um grande número de seguidores. Chegou a surgir uma igreja marcionita, que subsistiu por vários séculos.

Nem tudo que reluz

O caso de Márcion ilustra o fato de que não basta uma doutrina ou teologia ser atraente e popular. Não é suficiente que ela seja “lógica” e satisfaça as expectativas e preferências das pessoas. É preciso que ela seja verdadeira, coerente com a revelação dada por Deus nas Escrituras. Apesar de todo o seu aparente encanto, a teologia de Márcion se revelou falsa, uma perversão da mensagem bíblica. Esse fenômeno tem se repetido inúmeras vezes ao longo da história e continua a ocorrer nos dias atuais. Os ensinos são outros, os personagens são diferentes, mas o mecanismo é o mesmo.

Qual a origem dessas distorções? Em primeiro lugar, a tendência humana para o subjetivismo. A teologia é, por sua própria natureza, um empreendimento humano. Sua tarefa é refletir sobre os dados da revelação em busca de uma compreensão mais clara de Deus, do ser humano, da salvação e de todos os grandes temas da Escritura. No entanto, ela corre o risco de se tornar um esforço excessivamente personalista, gerando desvios antigos e novos bem conhecidos. Os reformadores do século 16 estavam conscientes desse perigo, ao insistirem que a teologia se apoiasse explicitamente na Palavra de Deus, corretamente lida e interpretada. Para tanto, elaboraram métodos saudáveis e equilibrados de exegese bíblica.

Respeito pela história

Mesmo que uma teologia seja bíblica, podem existir problemas. A Bíblia já foi utilizada, por exemplo, para defender a poligamia e a escravidão. A hermenêutica da Escritura pode ser excessivamente condicionada por estreitos pressupostos ideológicos. Daí a preocupação dos reformadores em valorizar a experiência teológica e exegética da igreja, acumulada ao longo das gerações. Ao mesmo tempo em que rejeitaram os dogmas para os quais não encontravam suporte na Palavra de Deus, Lutero, Calvino e seus colegas não hesitaram em acolher e utilizar tudo aquilo que viam de positivo no passado cristão.

O que tem acontecido com frequência no decorrer dos séculos, e também em nossos dias, é que muitos pensadores desprezam solenemente as contribuições do passado e a maneira como os cristãos têm entendido seu legado espiritual -- a chamada “fé cristã histórica”. Um bom exemplo é a própria doutrina de Deus, que tem experimentado as mais diferentes reinterpretações nos últimos tempos. Sob o pretexto de que a própria Bíblia ou a reflexão da igreja antiga foi contaminada pelo pensamento filosófico grego, são feitas reavaliações radicais acerca do ser divino. Um exemplo recente é o chamado teísmo aberto, que se afasta da compreensão cristã tradicional de Deus -- e do testemunho claro das Escrituras -- ao questionar as ideias da soberania e da providência divinas, e ao dar à liberdade humana uma dimensão e uma autonomia que o pensamento cristão majoritário jamais reconheceu.

Cuidado com as motivações

O marcionismo tinha motivações muito nobres: ressaltar a grandeza do amor de Deus e sensibilizar o mundo pagão com a mensagem cristã. O mesmo se pode dizer de outra heterodoxia cristã da antiguidade -- o pelagianismo. Pelágio queria que os cristãos vivessem vidas consagradas e santificadas. Quem poderia ser contra isso? No entanto, logo ficou evidente o fosso que havia entre suas ideias e o testemunho da Escritura. Para ele, o ser humano é moralmente neutro, tendo a plena capacidade, sem qualquer auxílio especial de Deus, de viver uma vida virtuosa, isenta de pecado. Muito bonito, muito empolgante, mas muito errôneo, como bem demonstrou o ilustre bispo Agostinho de Hipona.

Hoje, as motivações de muitas teologias vão do nobre ao questionável. No caso da nefasta teologia da prosperidade, o que ocorre é simplesmente uma sujeição da Escritura aos valores materialistas e hedonistas da sociedade de consumo. Já o teísmo aberto e os outros movimentos de inspiração semelhante são motivados pela necessidade legítima de lidar com uma realidade aflitiva -- o mal e o sofrimento no mundo de um Deus bom. O problema está, utilizando um chavão bem conhecido, em “jogar fora o bebê junto com a água do banho”. Em outras palavras, no esforço de explicar ao homem moderno uma questão espinhosa, são desprezados valores importantes da herança cristã. Procura-se alcançar um objetivo importante mediante o sacrifício da verdade bíblica.

Conclusão

A teologia é uma tarefa imprescindível e absolutamente essencial para o povo de Deus. Como a Escritura não apresenta formulações precisas e sistemáticas, coube à igreja se debruçar sobre os dados da revelação e organizar de forma coerente e harmônica suas verdades centrais. Sem a boa teologia, calcada numa exegese criteriosa do texto sagrado, os cristãos ficam à deriva em um mar de opiniões conflitantes a respeito de tudo. A fim de que seja benéfica para a igreja e para o testemunho cristão, a reflexão teológica tem de observar certos parâmetros, a começar de uma profunda reverência por Deus e sua Palavra. Além disso, ela não deve ser um exercício individualista, mas um esforço conjunto de cristãos que dialogam ao mesmo tempo com seus contemporâneos e com a “nuvem de testemunhas” do passado. Finalmente, o objetivo primário da teologia não é satisfazer os anseios ou dirimir as angústias do homem contemporâneo, mas ser fiel àquele que, em sua Palavra e em seu Filho, vem a nós em julgamento e graça.

Texto: Alderi Souza de Matos é doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e historiador oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil. É autor de A Caminhada Cristã na História e Os Pioneiros Presbiterianos do Brasil. asdm@mackenzie.com.br

Edição 330 – Revista Ultimato

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