domingo, 8 de abril de 2012

Uma liderança baseada no serviço - O exemplo de Cristo (Parte 1)



O Evangelho de João é fundamental para se compreender a cristologia de Jesus-servo porque nele estão bem refletidas as ações de Jesus como Servo de Deus. Apesar de ser um escrito do final do primeiro século da era cristã, no qual se revela uma “Teologia do alto”, entretanto, o livro de João privilegia temas especificamente de Jesus como Servo de Deus mediante imagens populares.

As imagens sobre Jesus agindo como Servo de Deus são simbólicas como a do
“Bom Pastor” doando sua vida pelas ovelhas, a do “Lava-pés” mostrando o
serviço igualitário entre os irmãos, a da “Galinha com seus pintainhos”
manifestando o cuidado, a da “Videira com seus ramos”, a do “Partir do pão”
revelando a comunhão e a do “Cordeiro de Deus”, as quais estão, misticamente,
associadas à cruz com a morte, a ressurreição e a entrega do Espírito (Jo 19, 30).

Jesus é o Bom Pastor

Quando se analisa a imagem de Jesus como Bom Pastor (Jo 10, 1-18) fica
notório a proximidade existente da outra imagem de Jesus como Servo de Deus.
Por isso, é importante compreender as ideias de ambas, principalmente em Israel.

Primeiro, é relevante analisar o significado da relação de escravo e o seu
senhor. Aqui se opta por conceitos sinonímicos entre escravo e servo. No tempo
primevo da Aliança em Israel não deveria haver escravos dentre os próprios
israelitas (Lv 25, 35ss), pois eles deveriam se lembrar de quando estiveram
escravos no Egito e foram resgatados pela ação libertadora de Iahweh (Dt 15,
12ss). Entretanto, em tempos posteriores, em Israel se permite escravos, pois se
havia uma lei acerca deles, conclui-se assertivamente pela existência de escravos
(Ex 21, 1-11). Esse surgimento de escravos em Israel tudo indica tê-lo havido no
tempo da monarquia. Dentro das próprias famílias e dos palácios havia escravos.
Era uma pessoa sem posse das principais características da pessoa humana como a
liberdade e a vontade. Quando se chegava ao sétimo ano tinha direito à liberdade,
porém, o seu senhor não podia alforriá-lo sem bens materiais (Dt 15, 13-14).
Em se tratando da relação entre escravo e senhor a lei estabelecia normas claras
para que não houvesse injustiças e se o escravo, mesmo tendo direito à liberdade,
quisesse continuar como escravo porque amava o seu senhor, este deveria recebêlo
(Ex 21, 5s).

Deste modo, a relação entre o escravo e o seu senhor é, de certa forma,
amizade. No decorrer do tempo ganha sentido de espiritualidade, havendo assim
uma transferência de significados entre escravos e senhores terrenos para escravos
e o Senhor Iahweh Deus. Este atributo a Iahweh de Senhor – adonai –
provavelmente foi concebido a partir dessa realidade terrestre e temporal dos
israelitas. Quem serve a Iahweh deve servi-lo como os servos servem ao seu
senhor por que o ama. Um serviço livre, porque quem ama, vive a liberdade como
dom, livre e gratuito, podendo assim amar livremente. Amar é ação salvadora e
eterna, porque quem ama participa da vida do Deus amor eterno (Jr 31, 3).

Muitos profetas se sentem tão arraigados a Iahweh quando fazem a
experiência dessa relação deles com Ele na forma “esponsal” entre amante e
amado (Os 2, 4ss; Ez 16). O livro “Cântico dos Cânticos” pode ser lido neste
contexto de uma experiência mística entre Israel e Iahweh num esponsal de
aliança. Desta forma o escravo quando faz um trabalho não o faz por obrigação,
mas o faz por prazer. Mesmo sendo trabalhos humildes o faz por força do amor
gratuito. Ele se realiza sendo gratuito no serviço do seu Senhor. Por isso, o
escravo ganha características místicas e uma delas é a sua liberdade interior para
amar o seu Senhor (Ex 21, 5).

O povo no Antigo Testamento também era considerado por Deus como
servo. No Novo Testamento, os apóstolos ao escreverem suas epístolas se
consideram servos do Senhor Jesus. Maria depois do diálogo com o anjo diz em
forma de contentamento: “Eu sou a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a
tua palavra” (Lc 1, 38). Num êxtase de louvor ao Senhor, Maria exclama em
oração: “Minha alma engrandece o Senhor e meu espírito exulta em Deus meu
Salvador, porque ele olhou para humilhação de sua serva” (Lc 1,46-47). Esta
liberdade e gratuidade se espraiam na pessoa de Jesus quando diz: “Eu dou minha
vida pelas minhas ovelhas. [...] O Pai me ama porque eu dou minha vida para
retomá-la. Ninguém a tira de mim, mas eu a dou livremente. Tenho poder de
entregá-la e poder de retomá-la” (Jo 10, 15b.17-18).

Segundo, a imagem do Bom Pastor e sua relação com o título Servo de
Deus. No Antigo Testamento há muitas referências à imagem do Pastor. Entre os
patriarcas vários eram pastores seminômades. Abraão era pastor (Gn 13, 2),
Moisés depois de sua fuga para Madiã casa-se com uma filha de Jetro, sacerdote e
pastor na região e exerce naquele momento o serviço de pastor (Ex, 3,1) e também
Davi (1Sm 16, 11), Mesa, rei de Moab era pastor (2Rs 3, 4). Muitos profetas
também o eram, entre os quais Amós (Am 1, 1). Eram meios de sobrevivência: o
leite, o queijo, a carne e também a exportação de matéria prima como a lã da
ovelha, o couro e o chifre para fazer seus produtos manufaturados. Várias
profissões, dentre elas a de curtidor de couro, artigos de lã de ovelha, indústria de
couro para fazer sandálias. Havia comércio de gado de vários tipos: ovino,
caprino, bovino, dentre outros.

A partir da relação entre pastor e as ovelhas criaram-se as imagens do Bom
Pastor e do mau pastor em Israel (Ez 34). E os profetas usaram-nas com referência
ao pastoreio de ovelhas e não de outro gado. Nas cercanias de Jerusalém havia a
criação de gado miúdo como ovelhas, cabras e pombas para serem vendidas para
abate nos sacrifícios a Iahweh no Templo, para o consumo das famílias e em
muitas hospedarias em Jerusalém. Existiam os locais onde o gado grande,
importado das regiões ricas, permanecia para engordar e ser vendido depois para
os sacrifícios e consumo. Nos oráculos messiânicos do profeta Jeremias o
próprio Deus está falando dos maus pastores, os quais não cuidam de suas
ovelhas. Iahweh mesmo vai pastorear suas ovelhas (Jr 23, 1-6). Logo após estes
oráculos contra os falsos pastores, o profeta introduz outras denúncias contra os
falsos profetas (Jr 23, 9ss). Também em Ezequiel há críticas denunciatórias contra
os falsos pastores e anúncio messiânico de um pastor, o qual apascentará as
ovelhas de Iahweh (Ez 34).

Com Jesus reaparece o tema das ovelhas e dos pastores tantas vezes
anunciado pelos profetas. Ele recupera o sentido originário e puro do pastor.
Ele afirma ser o Bom Pastor dando a vida pelas suas ovelhas (Jo 10, 11). Jesus
retoma a comparação alegórica de Ezequiel dos maus pastores e do Bom Pastor
enviado por Deus para bem cuidar do rebanho das ovelhas do Pai e este lhe
entregou o rebanho para ele o pastorear. Usa a alegoria profética dirigindo-se aos
fariseus e aos dirigentes religiosos e políticos de Israel, os quais não cuidam do
povo e, ainda mais, vivem explorando-o economicamente. Os dirigentes são
ladrões, assaltantes, bandidos e assassinos117 (Jo 10, 10).

Jesus é o Bom Pastor e, como tal, conhece e cuida das ovelhas entregando
a sua vida gratuita e livremente por elas. Dar a vida por amor aos seus amigos – e
amar e orar e perdoar até pelos inimigos (Mt 5, 43) – constitui-se o gesto máximo
do serviço do Bom Pastor. Jesus faz de sua vida uma história de um cuidado
redentor de Pastor. Além de se refletir sobre o gesto do pastor em entregar a
vida pelas ovelhas, crê-se ser importante ressaltar ainda dois aspectos. Um é o
relacionamento de Jesus com o Pai. “Como o Pai me conhece e eu conheço o Pai”
(Jo 10, 15), assim “eu conheço minhas ovelhas e as minhas ovelhas me
conhecem” (Jo 10, 14); outro é conseqüência do primeiro, o relacionamento de
Jesus com as ovelhas. As do rebanho e as que ainda não estão no rebanho, mas
também são do Pai e de Jesus, elas escutarão a voz de Jesus o Bom Pastor (Jo 10,
16; 10, 3-5). “Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil: devo conduzilas
também; elas ouvirão minha voz; Então haverá um só rebanho e um só Pastor”
(Jo 10, 16). Esta correlação tripolarizada: Pai/Jesus/ovelha-povo fará
compreender melhor o sentido do título de Jesus-servo na perspectiva da
Cristologia da Libertação de Jon Sobrino, quando correlaciona, por analogia,
Jesus como servo de Deus, os povos crucificados e os profetas martirizados.

Jesus no Lava-pés

Somente o evangelista São João descreve o gesto (ôt, em hebraico) do
lava-pés (Jo 13, 1-17). João não descreve a instituição da eucaristia, ou seja, o
texto contendo a fórmula da oração de bênção da “ceia do Senhor” como contém
as outras tradições paulinas e sinóticas. Apenas afirma, Jesus e os seus discípulos
estarem na ceia (Jo 13, 2). Após o gesto do lava-pés, Jesus entra com o anúncio da
traição de Judas e com o discurso de despedida, no qual, Ele dá o mandamento
novo (Jo 13, 34). Prossegue com um longo ensinamento sobre o Pai e o Espírito
Santo. Finaliza falando de sua “volta” nos fins dos tempos escatológicos (Jo 16,
16) e com uma Oração ao Pai, a chamada oração sacerdotal de Jesus (Jo 17),
destacando a unidade entre Ele e o Pai e, consequentemente, entre os discípulos
pelo Espírito.

O gesto do lava-pés é, indubitavelmente, o serviço do servo (1Sm 25, 40-
42). O evangelista João coloca-o dentro da eucaristia sem narrá-la como o fizeram
os outros evangelistas. Já pela tardança do escrito joanino – década de 90 d.
C. – dá para perceber a teologia bem desenvolvida na Igreja primitiva sobre
Jesus como Servo de Deus. O fato de João descrever o gesto do lava-pés e não o
gesto do partir do pão também leva a compreender a importância da teologia
joanina sobre o Servo. Não se trata de uma negativa da eucaristia na comunidade
evangelizada por João, mas a mensagem anunciada por ele afirmando ser
necessário para haver eucaristia, antes, dever-se lavar os pés uns dos outros. Como
a comunidade do discípulo amado é a do amor aos irmãos e por meio destes amar
a Deus, os dois gestos, do lava-pés (Jo 13) e do partir do pão (Jo 6) se
entrelaçavam demonstrando a mística do serviço e da comunhão. Apresenta-se
como comunidade do amor fraterno como forma de vida.

O gesto do lava-pés mostra alguns aspectos da kênosis de Jesus como
Filho do Pai. Ele é o Verbo eterno feito pessoa humana (Jo 1, 14). Dentro dessa
existência humana sua missão foi o trabalho dos mais humildes como o
simbolizam o gesto do lava-pés. É um aspecto social da kênosis de Jesus por ele
escolher o serviço dos últimos e a partir deste gesto falar do mandamento novo (Jo
13, 34). Todavia, não se exclui neste gesto do lava-pés, a kênosis de Jesus, não é
só uma encenação celebrativa, pois Jesus mostra realmente seu envio da parte do
Pai para servir e não para ser servido e sua realização como Deus encarnado está
em servir, entregando a vida livre e gratuitamente, como se vê na parábola do
Bom Pastor (Jo 10, 14-18).

O gesto do lava-pés é profético e tem como objetivo mostrar como Deus é,
como age mediante o serviço. Quer denunciar a situação humana, a qual deveria
ser da mesma forma do gesto apresentado e não está sendo por causa dos desvios
do ser humano quanto às suas atitudes desvirtuando o próprio ser criado à imagem
e semelhança divinas. O gesto profético por si mesmo é uma denúncia e um
anúncio. Uma denúncia de forma direta ou indireta, persuasiva e irônica, típica
dos profetas do Antigo Testamento ou de Sócrates (cerca de 470-299 a.C). Esta
tem como objetivo interrogar por palavras e/ou atitudes a um interlocutor,
fazendo-o reconhecer sua própria ignorância ou seu próprio erro. Ela quer
mostrar também novas prospectivas ao interlocutor à medida que ele reconhece
sua situação de ignorância ou erro, possa assumir novas atitudes reparadoras de
seus erros ou sair de seu estado de ignorância.

Nestes aspectos, veem-se alguns casos de gestos dos profetas no Antigo
Testamento, os quais muito bem expressam a ironia socrática e profética. O caso
do pecado de Davi. O profeta Natã conta-lhe uma parábola e o faz reconhecer o
seu pecado (2Sm 12, 1-15). Jeremias é enviado por Deus para fazer o gesto de
quebrar uma bilha de oleiro diante dos dirigentes de Israel para ameaçá-los e para
dizer ao povo que Iahweh fará assim com Israel se não se converterem (Jr 19).
Um gesto para dizer aos dirigentes, assim está o meu povo, aos pedaços. No
escrito joanino, os dois gestos – do partir do pão e do lava-pés - têm o mesmo
significado profético e se complementam. Destacam-se alguns aspectos relevantes
na cena do lava-pés.

A identidade e a missão de Jesus como Servo de Deus. Evidentemente
João não descreve Jesus dizendo “Eu sou o Servo de Deus” como o disse em
tantas outras asserções como: “Eu sou” em todas às vezes quando o texto quer
falar da divindade de Jesus, usa o verbo ser. Entretanto, quando se fala da missão
de Jesus se expressa na forma de serviço do servo: “O Filho do Homem não veio
para ser servido, mas para servir e dar sua vida como resgate por muitos” (Mt 20,
28). Em se tratando do fazer de Jesus e não diretamente do seu ser, é necessário
unir esses dois verbos. O ser dá a idéia de sua identidade e o fazer expressa a sua
missão. Contudo, não se pode fazer um hiato entre o ser de Jesus e o fazer.
Usando a imagem, são duas faces da mesma moeda girando dinamicamente, Jesus
se revela na sua missão com os gestos de amor.

Pelas suas ações, Jesus revela a sua identidade. O gesto de lava-pés
mostra com clarividência ser Jesus o Servo de Deus. Gesto é testemunho, é
entrega da vida. Quando se anunciava na Igreja primitiva: “Jesus ressuscitou!”,
sempre se dizia: “nós somos testemunhas disso” (At 2, 32). E o testemunho dos
apóstolos se tornou não somente anúncio verbal como também práxis de entrega
da vida, o martírio, começando pela prisão e morte de Estevão (At 7) e seguido
pelo primeiro apóstolo a ser martirizado, Tiago e depois Pedro e Paulo
martirizados em Roma. Esse testemunho dos apóstolos está no discurso de
Pedro ao povo sobre Jesus, quando ele diz ter sido os israelitas que entregaram
Jesus a Pilatos para que o crucificasse, mas Deus glorificou ressuscitando-o
verdadeiramente e, por isso, eles são suas testemunhas (At 3, 11-15). O fato de
estarem reunidospara a ceia da Páscoa: “Antes da festa da Páscoa, sabendo
Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os
seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13, 1). Jesus fala aqui de sua
hora, para revelar a sua morte e seu significado. Como está reunido em assembleia
com os seus, amando-os até o fim, há uma consciência de que a entrega de sua
vida pelo resgate de muitos é a vontade do Pai. Jesus está dentro da trama do
mundo, aqui representada pelo diabo o qual pôs no coração de Judas Iscariotes o
projeto de entregá-lo. Este vive o drama de entregar a sua vida, na sua hora, por
isso, ele lava os pés para tornar novos os reunidos pelo amor-serviço e para eles, a
vida é doada num gesto maior de amor a se entregar totalmente por uma causa e
assim sendo cumpre a vontade do Pai. Uma maneira de destruir o poder opressor é
configurar ou reconfigurar a vida como o poder-serviço.

Deste modo, o Pai mostra ao mundo e aos seus em comunidade como se
ama totalmente, entregando-se livremente mediante seu Filho. E, neste sentido,
Jesus afirma: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10, 30). O Pai quer mostrar ao mundo
como se ama plenamente e o mostra na medida do seu Filho, - amor até à morte
assumida na cruz - e neste amor está a salvação do mundo. E o gesto simbólico é
lavar os pés, serviços dos últimos da história, dos aniquilados. Quer dizer, Jesus
fez o serviço a partir dos escravos e se tornou, assim, o último dos últimos na vida
e na história da nova comunidade de Deus.

O lava-pés como lugar teológico. Esta cena expressa a cristologia do
serviço de Jesus à sua Igreja. É uma cristologia de baixo, do chão da vida e da
história. A partir desse lugar teológico, é salutar fazer uma cristologia do êxodo
descendente com o rebaixamento quando Jesus se atira aos pés dos discípulos e a
do êxodo ascendente da exaltação na execução do lavar os pés formando um
“único lugar teológico” a partir do qual se elabora a Cristologia da Libertação
Latino-americana. Jesus se compraz lavando os pés dos seus discípulos. Trata-se
de uma cristologia do lugar dos servos – poder-se-ia dizer como Jon Sobrino –
feita a partir do “lugar geográfico”, do “lugar histórico”, do “lugar vital” dos
empobrecidos feitos vítimas. Grande contribuição de seguridade metodológica
sobre o lugar teológico oferece Paul Tillich no seu projeto de teologia sistemática
quando aborda os “lugares de onde” e “como” e “quando” e “situacional” e
“existencial” onde se faz teologia. Constitui-se assim uma cristologia a qual
começa necessariamente do Jesus, pobre, servo e crucificado, os empobrecidos
latino-americanos bem como todos os empobrecidos do mundo. São vítimas que
assumem e são sujeitos de suas próprias histórias e por isso são cheias de
esperanças participando da “possibilidade de viverem já como ressuscitadas nas
condições da existência histórica”. Há uma reflexão sobre como viver o
seguimento de Jesus já como ressuscitado. Seguir a Jesus, não é seguir um morto,
mas um ressuscitado presente na história ao mesmo tempo em que se vive já a
realidade escatológica futura. Seguir a Jesus é participar de sua vida, de sua
crucifixão e ressurreição já na história. Citando K. Stendahl, literalmente,Sobrino
fundamenta sua reflexão cristológica: “O cristianismo é a permissão, a urgência e
a boa disposição para viver já, aqui e agora, a vida do mundo futuro. E isso quer
dizer: viver a vida da plenitude escatológica em um tempo de caducidade que não
está preparado para isso; e suportar todos os golpes e todas as desvantagens que
tal vida supõe”.

Uma cristologia da cruz, portanto, supera toda dicotomia entre a
divindade e humanidade de Jesus, assim também como entre Deus e o ser
humano. Antes forma uma interação perfeita, pois, como assevera Karl Barth,
quando escreve seu comentário da carta aos romanos, “o ser humano deixou de
ser apenas humano e Deus deixou de ser unicamente divino”. Uma asserção
bastante corajosa, sobretudo, em se tratando da realidade divina, pois o Deus
totalmente outro, transcendente, tornou-se com a encarnação também imanente e
participante de vida humana e a vida humana participante de vida divina. Na cena
do lava-pés há muitos verbos mostrando em pormenores ser a ação serviçal de
Jesus algo dado a partir do lugar dos escravos. Jesus se despoja de todas as alfaias
simbólicas do banquete para assumir a condição de escravo a servir: “Levantou-se
da mesa, deixou o manto e, tomando um pano, amarrou-o à cintura. Em seguida
lançou água na bacia e se pôs a lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com o
pano que trazia amarrado”.Toda essa acumulação dos verbos exprime as
atitudes de despojamento e de serviço de Jesus. Essas duas ações: a do
despojamento e a do serviço de lavar os pés.

A primeira ação do despojamento está relacionada à ação de entregar a
vida como Jesus havia dito no discurso sobre o Bom Pastor (Jo 10, 14.18). E a
segunda, do lava-pés, deve manifestar as forças do amor e fidelidade de Jesus aos
seus seguidores e ensiná-los a compreender esse gesto para fazerem o mesmo (Jo
10, 17). Lavar os pés de um Senhor ou de um visitante era um ato de acolhida e
hospitalidade e até de uma reverência afetiva. Sempre quem fazia esse serviço era
o servo, a esposa ao seu marido, os filhos e filhas ao seu pai. Jesus ao fazer tal
ação durante a refeição, nem antes nem depois como era o costume na cultura do
povo bíblico, põe o gesto do lava-pés e o gesto do partir o pão em dimensões
interativas. Na nova comunidade fundada por Jesus não há ceia pascal sem
lava-pés e vice-versa. Para ser discípulo de Jesus precisa fazer o mesmo realizado
por ele naquele momento pascal. Outra atitude importante no gesto de Jesus é o
serviço de humildade, gratuito e livre. Não se indica quem é o primeiro nem o
último a ser lavado por Jesus. Não há ordem de precedência para Jesus prestar o
serviço. Isto significa: na nova comunidade de Jesus, como compreende o
evangelista, todos são iguais, não há hierarquia entre eles. Também o fato de
Jesus tomar a decisão livremente em lavar os pés deles e pedir-lhes para fazerem o
mesmo e viverem o seu mandamento de amor mútuo, evidencia-se outra
realidade, a liberdade de cada discípulo em servir gratuitamente. Com isso, Jesus
destrói todo o poder dominador e toda superioridade de uns sobre os outros e
propõe uma forma de vida de amor fraterno, na qual, todos devem servir livres e
gratuitamente.

O seguimento de Jesus leva a formar a Igreja como povo de Deus, a qual
tem a presença do Espírito para viver no mundo uma prática de fraternidade
evangélica de serviços mútuos, de igualdade entre seus membros e respeitando as
diferenças, (por isso não é igualitarismo), de partilha dos dons, de convivência
familiar, enfim, uma Igreja em missão instaurando o Reino de Deus. Eis por que o
seguimento de Jesus quando reconfigurado a partir da interação do lava-pés e do
partir do pão tanto simbólico como na mesa comum se mostra como um
messianismo de “contracorrente” num sentido histórico e escatológico.

Fonte: http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/16704/16704_4.PDF - Acesso em 07.04.2012

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