O ano de 2010 foi marcado pela ocorrência de dois importantes eventos na área de missões. O primeiro foi a celebração do centenário da histórica Conferência Missionária Mundial ou Conferência de Edimburgo (1910), que se realizou nessa cidade escocesa no início de junho. O site oficial anunciou: “Cristãos de todo o mundo se encontram em unidade e exploram diferentes maneiras de testemunhar de Cristo hoje”. O outro evento foi o 3º Congresso de Evangelização Mundial, realizado em outubro de 2010, na Cidade do Cabo, África do Sul. O encontro reuniu 4 mil participantes de 198 nações e foi a continuação do movimento iniciado em Lausanne, Suíça, em 1974.
Curiosamente, esses encontros representaram duas orientações distintas do protestantismo: no primeiro caso, igrejas comprometidas com uma teologia progressista e ecumênica; no segundo, o evangelicalismo de linha moderada. Tais orientações, às quais correspondem diferentes entendimentos da missão da igreja, apontam para um grande desafio da missiologia: quais são exatamente os contornos da tarefa que foi confiada à igreja? O que a igreja é chamada a fazer no mundo contemporâneo? Infelizmente não tem existido unanimidade entre os cristãos nessa área vital, com sérias consequências para o seu testemunho na sociedade.
Quando se observa o Novo Testamento, verifica-se que Jesus conclamou os seus seguidores a “fazer discípulos” (Mt 28.19), “pregar o evangelho” ou “o arrependimento” (Mc 16.15; Lc 24.47) e “ser suas testemunhas” (At 1.8), em todo o mundo. A versão joanina da Grande Comissão é um tanto indefinida quando afirma: “Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio” (Jo 20.21). Além das palavras de Jesus, suas ações também foram decisivas quando os primeiros cristãos refletiram sobre a missão da igreja. O Mestre parece ter dado um sentido um tanto abrangente ao “evangelho” ou à mensagem do reino quando não somente pregou e ensinou, mas também socorreu os sofredores. Paulo entendeu a sua missão primordial como sendo anunciar o evangelho (Rm 15.16; 1Co 1.17; 9.16, 23). Ao mesmo tempo, ele também identificou uma tarefa subsidiária, secundária, que era auxiliar os pobres (At 20.35; Gl 2.10).
Nos séculos seguintes, a resposta da igreja ao chamado de Cristo foi diversificada. Houve esforços missionários sérios, bem-intencionados e amorosos, que levaram muitos povos e culturas a abraçarem a fé cristã. Ao mesmo tempo, em especial a partir do século 4, outras agendas passaram a ocupar de modo crescente as atenções da igreja, como o engrandecimento institucional, a busca do poder político e econômico, o anseio por controlar as diferentes áreas da sociedade. A relação com o outro, o diferente, ficou prejudicada pela intolerância doutrinária e religiosa, exemplificada na caça aos hereges e nas guerras contra os “infiéis”. Na Idade Média, os cristãos foram ao encontro dos pagãos não prioritariamente com o evangelho, mas com a espada. O missiólogo Ralph D. Winter se referiu às Cruzadas como “a mais imensa e trágica distorção da missão cristã em toda a história”. Esforços abnegados, porém isolados, de missionários como Raimundo Lull (†1316), pouco contribuíram para atenuar os danos causados.
No período moderno, tanto católicos quanto protestantes continuaram a entender a sua missão principalmente em termos de proclamação da fé cristã, embora essa fé muitas vezes estivesse revestida de uma roupagem cultural e institucional tão forte que podia obscurecer certos aspectos do evangelho. Foi graças a uma visão primariamente evangelística que o século 19 ficou conhecido, na famosa expressão do historiador Kenneth S. Latourette, como “o grande século das missões” na longa trajetória do cristianismo. Apesar das limitações citadas, pela primeira vez a fé cristã foi levada a todas as regiões do mundo, conforme o desejo expresso de Jesus.
O século 20 testemunhou uma grande mudança de perspectiva. À medida que se sucediam as décadas, as preocupações de ordem social cada vez mais passaram a se tornar prioritárias na agenda das igrejas do hemisfério Norte e de suas missões no hemisfério Sul. Os missionários que chegavam aos campos já não tinham como objetivo principal evangelizar no sentido clássico e plantar igrejas, mas dedicar-se a tarefas como criar escolas e hospitais, realizar projetos agrícolas, lutar pelos direitos dos operários e assim por diante. Na segunda metade do século 20, os interesses sociais e políticos de muitas igrejas históricas não só se tornaram cada vez mais definidores de seu conceito de missão, como também se ampliaram de maneira inusitada. Os recursos e as energias de muitas denominações se voltaram para causas como os movimentos de libertação nacional, desarmamento, direitos das mulheres e de minorias (grupos étnicos, homossexuais), reforma agrária, aborto etc., as assim chamadas “questões de justiça e paz”.
O “evangelho social” e a “teologia da libertação” foram dois movimentos muito influentes no sentido de subestimar o objetivo da conversão individual e priorizar a transformação das estruturas, a implantação do reino de Deus na terra, a redenção da sociedade. O problema dessa abordagem é a sua forte tendência secularizante. Muitos cristãos que se envolveram com as causas acima e outras, com frequência associados a pessoas sem convicções religiosas, acabaram por se afastar completamente da igreja e de um compromisso explícito com a fé cristã. Um bom exemplo desse fenômeno foi Samuel G. Inman (1877-1965), antigo secretário executivo do Comitê de Cooperação na América Latina, uma agência protestante norte-americana.
Qual o caminho a seguir? Em primeiro lugar, a missão cristã precisa ter um compromisso básico com a Escritura, com a fé bíblica, e não com a ciência, a filosofia, a política ou as ideologias humanas. Caso contrário, ela será tudo, menos missão “cristã”. Em segundo lugar, é preciso lembrar que a tarefa mais urgente e prioritária da igreja é o anúncio do evangelho, a mensagem de reconciliação com Deus por meio de Cristo. Outras instituições podem dedicar-se a atividades de promoção humana e defesa de direitos, mas se a igreja não pregar o evangelho redentor, ninguém mais o fará. Por último, não se trata de minimizar as questões sociais, mas de não considerá-las “a missão” da igreja. Se o evangelho for entendido em sua plena dimensão bíblica e teológica, ele incluirá outros interesses, mas sempre de maneira subsidiária e derivada, como entendeu o apóstolo dos gentios.
Um modo de conciliar essas alternativas é a proposta do teólogo reformado Michael Horton, segundo o qual a igreja, como instituição, deve se concentrar na pregação do evangelho, sua missão exclusiva e inescapável. Ao mesmo tempo, deve incentivar os seus membros para que, em caráter pessoal, também se envolvam com outros interesses coerentes com o evangelho, ilustrando assim o amor de Deus pelo ser humano integral. Uma vantagem dessa perspectiva é acentuar a ênfase dos reformadores do século 16, de que a verdadeira igreja não é meramente uma instituição, uma estrutura, mas o povo de Deus que o adora e o serve.
Texto de Alderi Souza de Matos. Doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e historiador oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil. É autor de A Caminhada Cristã na História e “Os Pioneiros Presbiterianos do Brasil”.
Publicado na Revista Ultimato (Edição 328 - jan/fev 2011).
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